quarta-feira, 15 de maio de 2013

Desabafo de uma Médica de Familia. Dá que pensar .....

Há evidencias tão evidentes que me pergunto, como foi possível termos permitido que se chegasse ao actual estado de coisas. Estou a falar da prescrição de fármacos, tantas vezes o corolário de uma consulta. Parece simples: uma queixa, um diagnóstico, um remédio que pode até nem ser um fármaco. Registos do acontecimento e avaliação posterior do resultado. No meio de toda a equação e passando por outros intermediários do processo, o dito remédio por vezes de facto um fármaco. Que tem um ou vários preços e é vendido ao balcão de um estabelecimento comercial que se chama farmácia, de uma forma pública ou seja sem privacidade não se fazendo registos do acto, para além dos necessários para fins contabilísticos. Enfim, todos os presentes na farmácia a assistir.
Durante décadas foi assim. O médico receitava, a farmácia dispensava e o doente pagava. Uma receita médica era inviolável. Era um termo de responsabilidade de um profissional que prescrevia um tratamento a alguém que teoricamente dele necessitava.
Nesta sociedade comandada pelo deve e haver, em que tudo o que respeita a fármacos envolve milhões, estalou o conflito. A industria farmacêutica um dos maiores negócios á escala planetária. O Estado, pagador de uma fatia considerável dos custos. A farmácia com os seus interesses, estrategicamente posicionada entre o médico e o doente. Mas a cadeia de intermediários não se fica por aqui. Agora existe também o armazenista a fazer a ponte entre a indústria e a farmácia. Um novo player como se diz agora.
Os custos dos fármacos subiram em flecha e a dada fase do processo surge o mercado de genéricos. Uma forma de tornar mais baratas as moléculas que já tinham ultrapassado o período da patente. Tudo certo.
Contudo, foi com a introdução dos genéricos que o processo se subverteu. E nós deixámos.
Com a introdução dos genéricos, o ministro á época entendeu passar um atestado de desconfiança a toda uma classe, e permitir a troca de fármacos na farmácia. E assim os genéricos entraram com o pé esquerdo. Bem trabalhada a opinião pública até aplaudiu. Porque os médicos recebiam muitas prendas e faziam muitas viagens ás Maldivas e nas farmácias eram todos muito honestos e só queriam o bem do doente e zelavam conscienciosamente pelos cofres do Estado, dispensando criteriosamente o remédio mais barato. E nós deixámos. É certo que ainda podíamos assinalar com uma cruz que não permitíamos a dispensa de um genérico. Foi sol de pouca dura, pois o mercado de genéricos floresceu. Ou melhor, explodiu. Se inicialmente já não sabíamos quantos genéricos existiam, em pouco tempo deixamos de saber quantos laboratórios de genéricos havia no mercado. Por vezes ao assinalar a não autorização de troca, o que pretendíamos não era impedir a dispensa do genérico, mas tão somente definir o laboratório fabricante, já que a forma como o modelo da receita estava elaborada não o permitia. Só estava prevista a troca de um remédio de marca por um genérico e não o próprio genérico. A partir desta altura tudo se trocava. Produtos de marca por genéricos, genéricos de um laboratório por genéricos de outro laboratório e quantas vezes até de uma molécula por outra. É certo que o doente tinha de concordar e firmar a sua assinatura, mas é humano atender á última coisa que nos é dito e lá estava ele pronto a assinar. E assinava. Com as trocas indiscriminadas começaram as confusões que se os nomes dos remédios são estranhos, os princípios activos são completamente arrevesados. Vá lá o doente comum, saber que toma uma carbamazepina e duas pregabalinas. É de mais. Mais simples é saber que toma um da caixa azul com uma risca branca e dois da caixa amarela com a risca verde e que se precisar ainda pode tomar da caixa encarnada com bolinhas rouxas. Estava preparado o terreno para a confusão generalizada. Considerando que ainda por cima e tratando-se de medicação crónica, na renovação do receituário lhe podiam ser trocadas todas as caixas. Não é preciso ser idoso para começar a trocar tudo. Mas a argumentação do farmacêutico, ou do técnico de farmácia ou de quem quer que esteja ao balcão da farmácia é clara. “Esse remédio está esgotado”. Também pode ser, “esse produto foi retirado do mercado, já não existe há muitos anos”. Aí, é o descrédito. Então o idiota do médico, nem isso sabe, pensa o pobre do doente. Mas logo a seguir vem a solução. Temos um exactamente igual e que faz o mesmo efeito e até é muito mais barato. Perante a evidencia o doente concorda e assina. A troca está consumada.
No entanto, muitas outras coisas podem acontecer. Os armazenistas podem ter interesse em fornecer às farmácias alguns fármacos em detrimento de outros, por exemplo. E assim, a farmácia é abastecida apenas dos remédios que interessam a alguém, algures pela cadeia acima. And so on. Os meandros da coisa são insondáveis e muitos cenários podem ocorrer. Já não estamos na narrativa básica do médico desonesto e vendido á industria farmacêutica e da farmácia honesta e benfazeja do interesse público, a bem da economia da nação. Isso era uma lenda. Os interesses jogam-se agora noutros tabuleiros!
Com a nova receita a coisa é ainda mais complicada, mas a verdadeira gincana, a autentica prova de barreiras é a prescrição electrónica. Mas reflectindo ainda sobre a nova receita em papel é no mínimo inquietante que onde constava “assinatura do médico prescritor” passe a figurar, assinatura do “prescritor”. Adivinham-se novos “players”. Que provavelmente não serão médicos. A ver vamos.
Entretanto a nossa vida tornou-se um inferno. E a dos doentes também. Temos grosso modo duas alternativas. A primeira é introduzir o princípio activo e “printar” a receita. Está pronto. A receita é passada ao doente, a farmácia vende o que entender. Como são todos muito honestos, naturalmente dispensam o mais barato. Sem registo de qual o fármaco entregue ao doente, de que laboratório. Efeitos secundários ou adversos não fazem história. Não interessam nada! Torna-se quase impossível fazer alguma fármacovigilância. Contudo, se os problemas forem mesmo graves, daqueles que até vêem no jornal, sempre é possível fazer uma investigação quase policial, pedir aos familiares que encontrem a caixa do remédio. Depois resta saber se era mesmo aquela ou se havia outra. A velha história.
Se o médico pretender saber exactamente o que o doente vai tomar, começa o slalom informático. Vai meter-se em grandes trabalhos. Primeiro tem de mudar o botão de pesquisa para “nome comercial”. Mesmo que pretenda escolher um genérico! Escreve o nome comercial ou o princípio activo (ridículo). Aparece a listagem que no caso do SAM praticamente não tem critério. Como o programa está tão bem feito que aproveita apenas uma pequena parte do ecrã, no caso de querer seleccionar o laboratório de origem do genérico ainda tem de deslocar o cursor para a direita, para visualizar a linha completa. Caso contrário nem o vê. Se existirem umas dezenas de fármacos com o mesmo nome, princípio activo, apresentação, dosagem etc., aparecem todos. Todos à molhada e é preciso andar para cima e para baixo até encontrar o que se pretende. Aí com um duplo clique a molécula vai para uma janela em cima e aparece por baixo da que o sistema seleccionou. A diferença é assinalada e lá aparece. Exemplo: este produto custa mais 0,03 cêntimos. Contudo se o médico pretende MESMO aquele, tem de marcar uma janela. OK, já está. Não, não está. O sistema ainda pergunta se tem mesmo a certeza que quer prescrever ESSE. Já com pouca paciência o médico assinala que sim. O sistema avisa mais uma vez que só em três situações pode prosseguir e abre uma janela com 3 caixas de verificação. Janela estreita, reacção adversa ou tratamento superior a 28 dias. Claro que a situação mais frequente é esta última. OK é um tratamento prolongado. Pois ainda aparece uma nova janela para introduzir o nº de dias previsto. Presumo que para o meu doente diabético o período previsível seja de ???? 365 dias. Como a janela dá para 3 dígitos optei por introduzir esse número. Estou tentada a pôr 666. Irei experimentar. Ainda aparece uma nova janela a dizer que nesse caso, alínea c), é obrigatória a introdução da posologia. Então e nos outros casos não é? Ponho a posologia. Quando finalmente tento passar para o segundo fármaco que pretendo receitar, ainda aparece mais uma janela a perguntar se quero gravar. Não, alguém anda a gozar connosco. Mas ainda não acabou. Longe disso. Quando o fármaco é seleccionado pelo médico e beneficia da tal bendita alínea c), a tal dos 666 dias de tratamento, as normas de prescrição exigem que seja passado apenas um fármaco por receita. É exactamente isso. Qualquer médico que ouse seleccionar quatro (4) remédios para o seu doente e tratando-se de medicação crónica e portanto com receita tripla para cada um deles, vê sair da impressora doze (12) receitas que como prescritor deve assinar. Por vezes o programa engana-se e printa mais que uma alínea c) na mesma receita, mas uns dias depois, lá está ela devolvida pela farmácia. Toca a recomeçar a narrativa para repor a lenda. É um fartar de papel, um fartar de caneta, um fartar de braço, um fartar de paciência.
A duplicação e a troca de fármacos atingem níveis nunca vistos. Por vezes até triplicação. É evidente que isto acontece muito mais na MGF, onde se prescreve mais, onde há mais idosos polimedicados que pedem sucessivamente a renovação do seu receituário. O que se está a passar é PERIGOSO para os doentes. Os acidentes de medicação estão sem controle. A nossa paciência está no limite.
Alguém tem de por cobro a isto. Pergunto: A Ordem dos Médicos foi consultada sobre a nova receita e sobre as novas regras de prescrição? O que tem a dizer sobre isto? O colégio da especialidade de MGF e de Medicina Interna, não têm nada a dizer perante a gravidade da situação?
Estamos a ficar loucos? Quando eu já não aguentar mais, vou deixar de seleccionar os fármacos dos meus doentes e limito-me a carregar num botão. Como nos “Tempos Modernos”. A receita sairá como os nossos decisores querem. A farmácia vai vender o que quiser. Os doentes vão continuar a trocar tudo e muitos deles já nem sabem o que tomam. A situação é tão grave que no caso dos idosos há muito que não sabem a quantas andam, nem as pessoas que lhes tratam dos remédios se entendem. Em breve a bagunça ainda vai aumentar, pois adivinham-se novos prescritores no pedaço.
E para concluir? Isto vai sair muito caro. Em vidas, em saúde e até mesmo em dinheiro.
Isto está a ficar um país de loucos. A insanidade, aliada á informática está a dar cabo de nós. Vamos continuar ZEN?

Fonte: e-mail

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