"O FIM DAS TRÉGUAS
Nada deve ter acontecido por acaso. Aparentemente, os mercados, as
agências de notação, a srâ Merkel, o Bundesbank, o FMI e os vários outros
autores da farsa europeia concertaram-se entre si para proporcionar aos
devastados povos da periferia europeia um período de tréguas de que eles
próprios também deviam precisar. Mesmo os vampiros metem férias. E a
Europa viveu um mês e meio de quente pasmaceira, que tanto pode ter
resultado do cansaço acumulado por todos, como significar apenas a trégua
antes do assalto final. Seja qual for a razão, nós, os gregos, os
espanhóis e os italianos, os povos do sul e do sol, vivemos um Verão
tranquilo, em contraste com o massacre das más notícias diárias dos
últimos dois anos. Como se generosamente nos quisessem ter deixado viver,
pela última vez, o esplendor do Verão mediterrânico.
Seria bom poder ficar assim para sempre, com o peso do sol que não nos
deixa abrir os olhos. Mas não, não podemos: também este sol é enganador.
Voltemos à vida, então.
Vamos despertar novamente para a realidade com a visita da troika, para a
semana que vem. O alemão, o etíope e o careca virão dizer que tudo está a
ser feito conforme desejado e previsto: isto é, que estamos no bom
caminho. Segundo o Citigroup, o desemprego em Portugal vai continuar a
crescer indefinidamente, a recessão, cujo fim em 2013 foi antecipado por
Gaspar e Passos Coelho, vai dobrar de um crescimento negativo de 3% este
ano, pelas previsões do Governo, para 6,3% no ano que vem, e a dívida vai
subir para 120% do PIB. E Portugal só sobreviverá com um perdão generoso
da dívida. Ou seja: o diagnóstico da doença foi bem feito pela troika e a
terapia é adequada. O malandro do doente é que não reage ao tratamento.
O processo ideológico de desforra do capital contra trabalho, conhecido
como ajustamento da economia portuguesa, e que consiste fundamentalmente
na promoção deliberada do desemprego e na sua desregulação social, como
forma de embaratecimento do custo do trabalho, não é afinal suficiente e
não produziu os efeitos desejados. Diz-nos o Banco de Portugal que o tal
ajustamento da economia portuguesa tem sido largamente ultrapassado pelo
ajustamento da economia europeia o que faz com que, longe de nos termos
tomado mais competitivos, nos tornámos 10% menos competitivos, em termos
de custos sociais do trabalho. O que é um dado inexplicável, visto que a
Europa não baixou salários, enquanto nós já os fizemos regredir ao nível
de cinquenta anos atrás. Mais um mistério criado por esta brilhante
geração de economistas e ideólogos da economia, que nos trouxeram até onde
estamos. E, se eles não sabem e não conseguem explicar onde está a origem
do problema, sabem qual é a solução: baixar ainda mais os salários e
deixar crescer ainda mais o número de desempregados, como forma de
pressionar em baixa o valor do trabalho contratado.
Quando eu estudei economia, alguns que hoje seriam considerados
ignorantes, como Keynes ou J. K. Galbraith, explicavam que uma economia
com uma taxa de desemprego de 20% era necessariamente uma economia falhada
de um país falhado. Hoje dizem-nos que é uma economia em processo de
ajustamento. Oxalá os burros sejam os velhos.
Quando, há uma dúzia de anos, escrevi e voltei a escrever que Portugal não
precisava de submarinos para nada, chamaram-me ignorante, anti-Forças
Armadas, pouco patriota. Mas eu não me referia apenas à inutilidade da
arma dos submarinos face aos interesses estratégicos de Portugal.
Referia-me também à inutilidade subsequente dos sarilhos que
inevitavelmente acarretaria a compra deles — para o que bastava conhecer
as regras habituais do jogo.
Agora, que escasseia o dinheiro para simplesmente manter os submarinos no
mar, que se atrasa deliberadamente a sua recepção porque não se sabe o que
fazer com eles, agora que se descobre que desapareceram os documentos
relativos à compra e que o Ministério Público se prepara para gulosamente
manter Paulo Portas em eterno mar de suspeitas, como fez com José Sócrates
no caso Freeport, agora julgo que haverá muita gente a pensar em voz baixa
o mesmo que eu escrevi há anos. Mas aquilo que ninguém conseguirá explicar
é a razão pela qual o Estado português assina um contrato que envolve
contrapartidas do fornecedor dos submarinos e, sabendo que a experiência
ensinava que nenhum contrato de contrapartidas era, de facto, cumprido até
ao fim, estabelece neste uma cláusula penal que permite à empresa
fornecedora não cumprir nada, se assim o quiser, e pagar apenas uma multa
no valor de 10% do seu incumprimento. Nem o mais inepto estagiário de
advocacia saído da Universidade Lusófona faria um contrato destes para um
cliente seu. Se querem saber a causa de milhares de milhões de euros
malbaratados pelo Estado português nos últimos anos, procurem-na nos
contratos celebrados em seu nome pelos poucos escritórios-maravi- Ihas de
advogados a que sempre se recorre, seja para comprar submarinos ou para
vender a RTP.
A venda da RTP, o negócio emblemático do ministro Miguel Relvas, segue,
pois, os trâmites habituais: por agora, escolhe-se o escritório de
advogados que há-de dar assessoria jurídica ao negócio, visto que os
advogados do Estado e os da RTP foram tidos como incompetentes para tal. E
escolhe-se também uma outra empresa externa que há-de definir a natureza
estratégica do negócio e o conceito de serviço público do que restar da
RTP, visto que o trabalho produzido sobre o assunto pelas várias comissões
nomeadas por este e anteriores governos não foi julgado válido.
Mas aquilo que nenhum outsourríng, por mais encomendado que seja,
conseguirá explicar é a própria razão da privatização de um canal da RTP.
Se o objectivo fosse o de cortar nos custos da RTP, bastaria fechar o
canal, não havia necessidade o vender. Se o objectivo fosse o de melhorar
a oferta audiovisual (num universo em que a TDT e o Cabo saturaram o
espaço com todo o género de ofertas), dificilmente se entende como é que
tal poderá ser levado a cabo pela Cofina, a misteriosa Ongoing ou a ainda
mais misteriosa empresa angolana cujo único aparente objecto social
consiste em perder dinheiro editando o semanário "Sol".
Todos os responsáveis da TVI, da SIC e da própria RTP, todos os que, de
uma forma profissional estão envolvidos e conhecem o mercado audiovisiual
português, são unânimes e veementes em explicar ao Governo que o
aparecimento de mais um canal generalista, num contexto de profunda
recessão do mercado publicitário, vai significar inevitavelmente a
inviabilidade económica dos já existentes ou um drástico corte de despesas
que terá fatalmente más consequências a nível da programação e da
informação produzidas. Até um inepto estagiário de gestão saído da
Lusófona percebe isto.
Se todos o percebem, se não há razão para imaginar que todo o Governo seja
mais estúpido que o comum das pessoas, e se ninguém se dá sequer ao
trabalho de explicar a razão desta privatização, só resta uma conclusão: o
que o Governo quer é exactamente o enfraquecimento ou o fim das televisões
privadas existentes. Não é por caso ou por ignorância: é por vontade
deliberada.
Entretanto, apareceu agora esse génio incompreendido que é o dr. António
Borges, o Liquidatário-Geral do património público a benefício da
"iniciativa privada", com uma alternativa genial: em lugar de vender, o
Estado concessionava, por 15 ou 20 anos, o lº canal da RTP, depois de
encerrar o segundo; e, em lugar de transferir os habituais 200 milhões/ano
para a RTP pública, passaria a transferir só 140 milhões para a RTP
privada. Assim, segundo o dr. Borges, o Estado poupava dinheiro e nem
sequer vendia a sua televisão. Assim, digo eu, iríamos ter mais uma
privatização que resultaria em despesa e não em receita e alguém iria
receber de mão beijada uma televisão já montada, com nome estabelecido no
mercado, todas as infraestruturas a funcionar, pessoal já qualificado e
mais 140 milhões por ano do Estado. Um case study a "privatização" do dr.
Borges.
Suponho que, neste dossiê, como no da privatização da TAP, seja de mais
esperar que o senhor Presidente da República se incomode com o assunto.
Estamos indefesos.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia "
Nada deve ter acontecido por acaso. Aparentemente, os mercados, as
agências de notação, a srâ Merkel, o Bundesbank, o FMI e os vários outros
autores da farsa europeia concertaram-se entre si para proporcionar aos
devastados povos da periferia europeia um período de tréguas de que eles
próprios também deviam precisar. Mesmo os vampiros metem férias. E a
Europa viveu um mês e meio de quente pasmaceira, que tanto pode ter
resultado do cansaço acumulado por todos, como significar apenas a trégua
antes do assalto final. Seja qual for a razão, nós, os gregos, os
espanhóis e os italianos, os povos do sul e do sol, vivemos um Verão
tranquilo, em contraste com o massacre das más notícias diárias dos
últimos dois anos. Como se generosamente nos quisessem ter deixado viver,
pela última vez, o esplendor do Verão mediterrânico.
Seria bom poder ficar assim para sempre, com o peso do sol que não nos
deixa abrir os olhos. Mas não, não podemos: também este sol é enganador.
Voltemos à vida, então.
Vamos despertar novamente para a realidade com a visita da troika, para a
semana que vem. O alemão, o etíope e o careca virão dizer que tudo está a
ser feito conforme desejado e previsto: isto é, que estamos no bom
caminho. Segundo o Citigroup, o desemprego em Portugal vai continuar a
crescer indefinidamente, a recessão, cujo fim em 2013 foi antecipado por
Gaspar e Passos Coelho, vai dobrar de um crescimento negativo de 3% este
ano, pelas previsões do Governo, para 6,3% no ano que vem, e a dívida vai
subir para 120% do PIB. E Portugal só sobreviverá com um perdão generoso
da dívida. Ou seja: o diagnóstico da doença foi bem feito pela troika e a
terapia é adequada. O malandro do doente é que não reage ao tratamento.
O processo ideológico de desforra do capital contra trabalho, conhecido
como ajustamento da economia portuguesa, e que consiste fundamentalmente
na promoção deliberada do desemprego e na sua desregulação social, como
forma de embaratecimento do custo do trabalho, não é afinal suficiente e
não produziu os efeitos desejados. Diz-nos o Banco de Portugal que o tal
ajustamento da economia portuguesa tem sido largamente ultrapassado pelo
ajustamento da economia europeia o que faz com que, longe de nos termos
tomado mais competitivos, nos tornámos 10% menos competitivos, em termos
de custos sociais do trabalho. O que é um dado inexplicável, visto que a
Europa não baixou salários, enquanto nós já os fizemos regredir ao nível
de cinquenta anos atrás. Mais um mistério criado por esta brilhante
geração de economistas e ideólogos da economia, que nos trouxeram até onde
estamos. E, se eles não sabem e não conseguem explicar onde está a origem
do problema, sabem qual é a solução: baixar ainda mais os salários e
deixar crescer ainda mais o número de desempregados, como forma de
pressionar em baixa o valor do trabalho contratado.
Quando eu estudei economia, alguns que hoje seriam considerados
ignorantes, como Keynes ou J. K. Galbraith, explicavam que uma economia
com uma taxa de desemprego de 20% era necessariamente uma economia falhada
de um país falhado. Hoje dizem-nos que é uma economia em processo de
ajustamento. Oxalá os burros sejam os velhos.
Quando, há uma dúzia de anos, escrevi e voltei a escrever que Portugal não
precisava de submarinos para nada, chamaram-me ignorante, anti-Forças
Armadas, pouco patriota. Mas eu não me referia apenas à inutilidade da
arma dos submarinos face aos interesses estratégicos de Portugal.
Referia-me também à inutilidade subsequente dos sarilhos que
inevitavelmente acarretaria a compra deles — para o que bastava conhecer
as regras habituais do jogo.
Agora, que escasseia o dinheiro para simplesmente manter os submarinos no
mar, que se atrasa deliberadamente a sua recepção porque não se sabe o que
fazer com eles, agora que se descobre que desapareceram os documentos
relativos à compra e que o Ministério Público se prepara para gulosamente
manter Paulo Portas em eterno mar de suspeitas, como fez com José Sócrates
no caso Freeport, agora julgo que haverá muita gente a pensar em voz baixa
o mesmo que eu escrevi há anos. Mas aquilo que ninguém conseguirá explicar
é a razão pela qual o Estado português assina um contrato que envolve
contrapartidas do fornecedor dos submarinos e, sabendo que a experiência
ensinava que nenhum contrato de contrapartidas era, de facto, cumprido até
ao fim, estabelece neste uma cláusula penal que permite à empresa
fornecedora não cumprir nada, se assim o quiser, e pagar apenas uma multa
no valor de 10% do seu incumprimento. Nem o mais inepto estagiário de
advocacia saído da Universidade Lusófona faria um contrato destes para um
cliente seu. Se querem saber a causa de milhares de milhões de euros
malbaratados pelo Estado português nos últimos anos, procurem-na nos
contratos celebrados em seu nome pelos poucos escritórios-maravi- Ihas de
advogados a que sempre se recorre, seja para comprar submarinos ou para
vender a RTP.
A venda da RTP, o negócio emblemático do ministro Miguel Relvas, segue,
pois, os trâmites habituais: por agora, escolhe-se o escritório de
advogados que há-de dar assessoria jurídica ao negócio, visto que os
advogados do Estado e os da RTP foram tidos como incompetentes para tal. E
escolhe-se também uma outra empresa externa que há-de definir a natureza
estratégica do negócio e o conceito de serviço público do que restar da
RTP, visto que o trabalho produzido sobre o assunto pelas várias comissões
nomeadas por este e anteriores governos não foi julgado válido.
Mas aquilo que nenhum outsourríng, por mais encomendado que seja,
conseguirá explicar é a própria razão da privatização de um canal da RTP.
Se o objectivo fosse o de cortar nos custos da RTP, bastaria fechar o
canal, não havia necessidade o vender. Se o objectivo fosse o de melhorar
a oferta audiovisual (num universo em que a TDT e o Cabo saturaram o
espaço com todo o género de ofertas), dificilmente se entende como é que
tal poderá ser levado a cabo pela Cofina, a misteriosa Ongoing ou a ainda
mais misteriosa empresa angolana cujo único aparente objecto social
consiste em perder dinheiro editando o semanário "Sol".
Todos os responsáveis da TVI, da SIC e da própria RTP, todos os que, de
uma forma profissional estão envolvidos e conhecem o mercado audiovisiual
português, são unânimes e veementes em explicar ao Governo que o
aparecimento de mais um canal generalista, num contexto de profunda
recessão do mercado publicitário, vai significar inevitavelmente a
inviabilidade económica dos já existentes ou um drástico corte de despesas
que terá fatalmente más consequências a nível da programação e da
informação produzidas. Até um inepto estagiário de gestão saído da
Lusófona percebe isto.
Se todos o percebem, se não há razão para imaginar que todo o Governo seja
mais estúpido que o comum das pessoas, e se ninguém se dá sequer ao
trabalho de explicar a razão desta privatização, só resta uma conclusão: o
que o Governo quer é exactamente o enfraquecimento ou o fim das televisões
privadas existentes. Não é por caso ou por ignorância: é por vontade
deliberada.
Entretanto, apareceu agora esse génio incompreendido que é o dr. António
Borges, o Liquidatário-Geral do património público a benefício da
"iniciativa privada", com uma alternativa genial: em lugar de vender, o
Estado concessionava, por 15 ou 20 anos, o lº canal da RTP, depois de
encerrar o segundo; e, em lugar de transferir os habituais 200 milhões/ano
para a RTP pública, passaria a transferir só 140 milhões para a RTP
privada. Assim, segundo o dr. Borges, o Estado poupava dinheiro e nem
sequer vendia a sua televisão. Assim, digo eu, iríamos ter mais uma
privatização que resultaria em despesa e não em receita e alguém iria
receber de mão beijada uma televisão já montada, com nome estabelecido no
mercado, todas as infraestruturas a funcionar, pessoal já qualificado e
mais 140 milhões por ano do Estado. Um case study a "privatização" do dr.
Borges.
Suponho que, neste dossiê, como no da privatização da TAP, seja de mais
esperar que o senhor Presidente da República se incomode com o assunto.
Estamos indefesos.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia "
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